quinta-feira, 29 de julho de 2010

Cúmplice de liberdade



Liana iniciou uma viajem pela lua. Cansou-se de manter o juízo, elefante branco sem utilidade. Sabe que sua sorte não estaria nas estrelas, mas na terra anda tudo chatinho mesmo, pequenos suspiros condicionais, sem gosto como comida de hospital. Agonia das mesmas caras, mesmas contas difíceis de pagar, não lembra em qual gaveta esqueceu o sorriso.
Seu cotidiano é arrumar a casa, varrer o caos pra debaixo do tapete. Chora as mágoas da incerteza escrevendo poesia com seu cúmplice de banho de mar, de liberdade. Um anti-herói familiar que matava um leão por dia para deixar aberta a porta da gaiola e fazer Liana voar. Encolhida do frio no edredom da segurança, esqueceu como se voa, lamenta como é perecível uma tentativa frustrada de felicidade. Na lua observa que o circo contínua armado, peça vazia de atriz cansada, sem condição de esconder na fantasia o desespero transbordante. Resolve perder mais um tempinho na lua, quem sabe não tropeça nas asas perdidas e voa de novo, voa sem volta, louca, lúcida, viva de novo.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O saci albino


Cara de bezerro era um espírito da floresta, criatura da mitologia grega meio homem meio cabrito. Fazia parte do meu imaginário como um duende. A criançada morria de medo da figura que habitava o bosque. Perverso com a natureza, maltratando micos, espantando pássaros. Nos fins de semana o horto botânico lotava, adultos fazendo cooper, gurizada de bicicleta nova, vendedor de pipoca, mendigo cagando no mato e Cara de bezerro puto com todo mundo no parque que julgava seu. Odiava gente, sua feiúra ficava mais evidente na presença dos humanos. Chocado testemunhei um dia ele afogar um filhote de gato, afogava e ria, gelei imaginando cara de bezerro torcendo meu pescoço enquanto arreganhava aqueles caquinhos amarelos que ele achava ser dentes. Troquei o horto pelo shopping, adolescente parei de ter medo de monstro. Longe daquele universo nunca mais tinha ouvido falar do sujeito, quando em uma calorenta tarde de sábado me deparei com o saci albino tomando cerveja em um boteco da alameda. Parecia ter medo de todo mundo, tão frágil, tão humano. Realmente possuía uma evidente síndrome que lhe causava alguma demência e lhe dava aquele aspecto tão horrendo. Eu de barba na cara e não me achando certo da idéia a ponto de julgar alguém, entendi que a fantasia de criança é feita de heróis e demônios e quando adulto se percebe que a linha que separa o mocinho do bandido é tênue.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Contra ao vento


Nas manhas úmidas de sereno, surge o dono da alameda. Cúmplice calado da fumaça negra dos ônibus. Faça chuva ou faça sol o senhor supremo da sarjeta cambaleia pelo trânsito. Abstrato, fantasiado de sujeira, carrega no corpo quinquilharias que compõem um figurino confuso, cheio de cores e odores. Ninguém sabe o seu nome, sua história, no semblante fechado esconde uma melancolia nos olhos úmidos, tapado de barba, repleto de caracas. Seu banheiro é um pneu que usa para deixar no canal os seus dejetos, um espantalho urbano, causando repulsa, deixando no rastro pessoas tapando as narinas, tomando distancia. Abandonado da sanidade deixou o CPF no passado virou uma ratazana gigante. Vagando bobo, calado, dizem a boca pequena que é mudo, certo é que foge a regra dos lunáticos com algazarra peculiar. Sem paradeiro certo, dorme uma hora em viaduto, outra em marquise, imprevisível, camuflado da prefeitura que recolhe o povo da rua.
Não bebe álcool, não usa droga, perambula a esmo sem pedir comida, dinheiro, gosta de ser independente, dono daquilo que as pessoas perdem, deixam pelo caminho, o resto compõe uma fantasia trágica, ofendendo os caretas que não sabem que a arte é um moleque temperamental, pode estar no luxuoso museu da Europa, pode estar no miserável que trajando entulho, livre e intrépido é conhecido como homem lixo.