segunda-feira, 29 de março de 2010

Bebendo coragem


A birita é o elemento encorajador do bicho homem. Basta à cana fazer efeito para o medroso ficar valente. Todo cachaceiro de poucos recursos sabe que a noitada deve ser planejada para não sair tão cara e estuda a possibilidade de começar os trabalhos naquele boteco barato próximo da boate. O lugar em questão era o kabaret kalesa, reunia os mauricinhos no coração dos inferninhos da praça Mauá, com direito a strip tease e etc. Pela localização não era difícil encontrar a birosca para fazer a cabeça, nesse caso tinha uma do lado da casa, bebemos o suficiente para entrar no brilho, mas como o excesso é fundamental resolvemos levar um pouco do bar para dentro do recinto, o escolhido para empreitada foi Guto, pois estava em fase avançada da cachaça, enchemos duas garrafas pequenas de água mineral com rum e ele as colocou presa nas bainhas enormes da sua calça, ficou engraçado, mas não tanto perceptível causando apenas uma leve dificuldade para andar, a fila da boate terminava na grande escadaria onde dois enormes leões de chácara revistavam os baladeiros. Guto mesmo bêbado sentiu um frio na barriga, mas devido às presenças femininas ocultou com um sorriso tímido para não desfazer ali sua fama de maluco. Subiu a escadaria o mais devagar possível para as garrafas não saltarem da calça, foi revistado na cintura por um negão de dois metros e quando já estava de cara para vitória sentiu o toque no ombro.
-senhor, que volume é esse na parte de baixo na sua calça?
Perguntou o outro segurança encurralando sua entrada. Desesperado e precisando pensar rápido usou a única alternativa que veio a cabeça para evitar o vexame de ser banido do lugar sobe os olhares de todo o público.
-e que eu tenho perna mecânica!
Mandou na lata do sujeito, com uma cara de pau que nem ele sabia que possuía.
-desculpe senhor, pode entrar por favor!!
Solicito, o brutamontes ajudou nosso lesado bêbado a se locomover com o seu barzinho de bolso sob os olhares abismados do nosso povo. Mal entrou na casa, o milagre trouxe de volta a agilidade da nossa fera que transformou seu volume em diversas cuba libres. Acho que nunca antes vi alguém jogar tão baixo em prol da bebida, com certeza essa aventura politicamente incorreta não aconteceria sem a ajuda etílica, mas no fim das contas teve um sabor gostoso em burlar o sistema capitalista explorador dos boêmios tesos.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Um lero com Deus


Era uma tarde de sábado como outra qualquer, Barrigudinho tinha como rotina curtir o silêncio do quarto queimando um depois do almoço. Parecia um daqueles cafés de Amsterdã que via na televisão. No décimo segundo andar, o vento encanado dissipava o cheiro sem despertar a atenção de curiosos, uma liberdade gozada na selva de pedra, dentro do seu templo com o seu cigarrinho de artista. O efeito, unido ao relaxamento do ambiente trazia para o doido as maiores viagens, magia capaz de transporta-lo para o coração da natureza, se via entre montanhas, submerso na água gelada de uma cachoeira de Sana, um momento só dele. Amava sexo, dinheiro, mas aquele estado de êxtase vinha em primeiro lugar, essa preferência inclusive podia ser até o motivo de estar sempre em falta dessas outras coisas, pois a aparência não ajudava, seus dreads nunca viam água, clássico desempregado sem pretensão de integrar o mercado de trabalho, um sonhador de havaianas nos pés e poucas ideias devido a tanta cremação diária de neurônios. Mas tudo bem, a onda substituía prazeres menores. De repente uma voz grave invadiu sua harmonia.
-barrigudinhoooooo!
Um eco assustador pronunciava seu apelido. Acreditando ser apenas paranoia, virou de costas para janela e deu uma leve puxada no bagulho para espantar os fantasmas.
-barrigudinhooooo!
Persistiu o grito, o suficiente para despertar o maltrapilho da sua preguiça.
-Deus?
Alucinado Barrigudinho olhou para o pedaço de céu nos fundos do prédio na esperança de encontrar o divino. Na cobertura vizinha três conhecidos rolavam no chão rindo do diálogo do lesado com o espírito santo que eles que nada tinham de santo começaram.

terça-feira, 16 de março de 2010

Sofrimento fiel


Pica-pau era um lorde das ruas do bairro. Proprietário de um burro sem rabo, trabalhando e fazendo dele seu lar móvel, vagando pela cidade, seguido pela sua cachorrada. Mais de dez vira-latas completavam sua corte, de todos os tamanhos, cores e humores, uma malta barulhenta enlouquecendo os arrogantes que mudavam de calçada enojados com tanta balburdia evitando topar com o sem teto. Pica-pau não se importava, não era mesmo dado a banho e coisas de higiene, seu único prazer era uma caninha no final das atividades. Era companhia divertida, sempre postado na calçada da padaria de Seu Jorge onde filava cerveja dos solitários com seus causos em que jurava ter sido rico, dono de puteiro, alimentando o boato de vir fugido de um lugar distante depois de matar um sujeito. Até aonde era verdade os relatos da figura pitoresca ninguém podia saber, mas o apelido ganhou por adorar imitar o personagem famoso do desenho animado com seu gritinho de he he he. Uma manha chuvosa de terça despertou estranho, recusou bebida, rejeitou o pingado que o padeiro oferecia no começo do dia. Estava cabisbaixo, sem força não saiu em busca de trabalho, o resto da semana seu estado foi se agravando até o perceberem desacordado. Na padaria fizeram inúmeras tentativas de conseguir uma ambulância para recolhê-lo, sem êxito improvisaram o pobre no carro do dono e levaram para assistência. Internado em estado grave faleceu em poucos dias, dando fim a uma história envolta de mistérios.
A cidade perdia um personagem curioso, oriundo da miséria porem carregado de brilho próprio. Partia na sua liberdade de levar a vida sem vintém, maltrapilho folclórico que literalmente não tinha onde cair morto. O dono da padaria patrocinou do próprio bolso o ultimo desejo do moribundo de não ser enterrado como indigente.
Pica-pau teve uma despedida sentida, sofrida por muitos, um velório populoso, mas nada se comparou a dor da família canina. Um sofrimento fiel, uivando chorosa a passagem do pai, protesto inútil deixando evidente a lacuna da ausência. Era a demonstração da natureza ensinando que a falta nem sempre vem do bolso do soberbo que se julga importante para sociedade, mas pode vir do mendigo que não tem medo de desperdiçar amor, única coisa de valor que pode ter.

terça-feira, 9 de março de 2010

Um gole antes de partir


Na década de noventa, qualquer fim de semana era motivo de viajem para o interior do estado. Forma deliciosa de reunir mulheres, amigos e historias impagáveis. Mão de faca, figura querida pelo seu jeito aloprado de protagonizar com naturalidade coisas inusitadas, se orgulhava em ser um ás do volante quando alcoolizado, tinha dado batidinha quando sóbrio, uma morsa simples, por motivo de afobação, de pileque exibia sua destreza sem nunca ter sofrido avaria. Devido a isso não deu ouvidos para o conselho dos amigos de irem de táxi para festa agropecuária na outra cidade.

Chegando intacto na festa, creditou a segurança do trajeto aos goles de vodka que tomou pelo caminho, radiante foi a caça da mulherada. Lá pela madrugada Mão de faca ainda não tinha sido feliz na sua busca, até então só tinha beijado latinha de cerveja e um pouco alterado se divertia atirando palitos de fósforo acesos nas escovas progressivas das mocinhas que o rejeitavam. Rafael veio em nome do grupo comunicar que estavam planejando terminar a noite na boate que ficava no mesmo quarteirão, apesar do povo decidir ir a pé, a excêntrica figura resolveu ir motorizado. Quando retirava o possante do estacionamento percebeu os músicos da festa precisando de carona, por uma dessas ideias estapafúrdias que só surgem na cabeça de biriteiro Mão de faca ofereceu seus serviços de motorista e apesar de receosos a banda aceitou o convite. Mudando seu caminho, partiu com seu palio lotado em uma trip de sessenta quilômetros. Na metade do trajeto o povo desesperado com a velocidade fez nosso amigo parar o carro no posto de gasolina de beira de estrada, assim o solitário aventureiro resolveu voltar para casa na ideia de ocupar uma das poucas camas do recinto antes da galera. Ébrio, vagando por uma estrada rural deu uma leve piscada de olho e encontrou pela frente a cerca de arame farpado, grande estrondo, mas se recompôs e continuou seu caminho. Desabou no sofá da sala mesmo, sono pesado, nem viu o resto do povo retornar da gandaia.
Cabeça zunindo no dia seguinte foi acordado por Rafael onze da manhã.
-o que é aquilo no seu carro?
Todos ao redor, examinavam sua carcaça de biriteiro para ver se estava inteiro.
-esbarrei em um cerca e dei um arranhão!
Já pensava em continuar seu sono quando sentiu que o buraco era mais embaixo. Levantou e foi conferir sua obra, a lateral do veículo estava acabada assim como sua habilidade de motorista bêbado.
Mão de faca curtiu tímido o restinho de exposição, doeu no bolso constatar que o cachaceiro no volante só ganha mesmo é sono e coragem, mas consequentemente perde todo seu reflexo.




terça-feira, 2 de março de 2010

A muié do lobisomem.


No alto da colina vivia Bernardo o lobisomem, proprietário de um terreno que reunia duas dúzias de casebres e sua bucólica residência com natureza por todo lado. Uma linda pedreira onde a tímida favela até então tinha dono, comparada com e explosão de favelas dos morros cariocas. Barraco lá tinha apenas o velho como proprietário, temido com suas histórias horripilantes, causava medo e cobrava o aluguel de porta em porta. O índice de inadimplência era pequeno, pois dizia à lenda que o despejado não abandonava apenas o lar e sim desaparecia para sempre no bucho do velho lobo. Comentavam que muitos tiveram esse triste fim, mas como pobre tem por consequência ser corajoso vez por outra aparecia um desgraçado que não podia comparecer com o aluguel e vivia o temor de enfrentar a fera, caso de Olívio, apaixonado pelos prazeres da cachaça, enfrentava seu medo com a coragem etílica e já enrolava alguns meses, o comentário era que o idoso salivava imaginando os ossinhos de pouca carne do biriteiro. Olívio gritava pelas biroscas da vida que não temia bicho nenhum e que na noite de lua cheia a fera iria parar de uivar na ponta da sua peixeira, como a valentia de um ébrio nunca é a mesma de um sóbrio, em noites enluaradas sem birita tremia de medo debaixo do encardido cobertor. A esposa Edna, nordestina destemida não temia a besta, sua vida tinha muitas assombrações para se preocupar, se o marido fosse devorado oitenta por cento desses conflitos iam parar no estomago do peludo, mas tinha consciência que indo para sarjeta não ia conseguir lugar decente como aquele para um pobre morar, sem medo de trabalho resolveu enfrentar o monstro oferecendo seus serviços de domestica em troca da divida. Tamanha atitude tocou o à fera que com noventa e poucos anos não parecia virar nem um cãozinho lazarento. Se sentido amparado pela primeira vez desde que a falecida o deixou há quase quarenta anos, Bernardo fez da valente Paraíba sua governanta, mas para língua do povo a mulher do lobisomem. Edna adquiriu respeito em toda região, causando tanto medo quanto. Terror era limpar o casarão que muito tempo acumulava todo tipo de sujeira, depois veio à autonomia de enfrentar os inquilinos que sentiram na pela a verdadeira assombração, impiedosa expulsou o marido bebum na base da porrada para dar exemplo, vendo a surra o povo disse que o bucho do bicho seria melhor fim. O lobo domesticado morreu sorrindo junto com suas temidas histórias, sem herdeiros incontestavelmente seus espólios passaram para a Edna que dignamente abandonou de vez a pobreza sendo a senhora do morro. Arrependimento não tinha nenhum, pois era mais feliz sendo viúva do lobisomem que mulher do cachaceiro.