terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O inferno de estimação.





Miro gordo se impressionava com o sabor suave da cerveja gelada tão condenada nos últimos anos. Antes rei do carnaval, agora um simples plebeu impressionado com menores prazeres. O seu reinado fora abandonado muito tempo atrás quando o doutor lhe apresentou o resultado do exame que condenava veementemente sua obesidade mórbida. No começo, frustrado, abandonou o titulo monárquico que lhe acompanhou por pelo menos oito carnavais. Além da fama deixou também de lado o maior dos seus biscates, que lhe gerava comerciais e apresentações em todo o ano porque vivia no país do carnaval.
Magoado com o destino, jurou que a folia do começo do ano nunca mais teria sua presença. Os amigos de antes deram espaço para a devoção e abraçou de vez a fé da mãe freqüentadora dos cultos. Tentava convencer aos outros e a si mesmo que para estar vivo teria que condenar todo seu passado de esbórnia. O Bonachão, incapaz de passar na roleta do ônibus, virou um flácido e melancólico novo magro. Escondido debaixo de um terno surrado sofria com o calor dos trópicos nas lindas manhãs ensolaradas de domingo.
Com a tristeza estampada nas olheiras, Miro magro, agora invisível caia por terra vivendo a sombra do dilema cruel que lhe colocara o doutor. Sua melancolia era toda porque se descobrindo magro, se descobriu outro Miro. Um Miro sem graça e sem sal. Não era rei no carnaval nem em outra época do ano qualquer. Participou de inúmeras palestras em que lhe diziam inúmeros benefícios que a falta de peso lhe traria, inclusive uma aparência elegante que agradaria o publico feminino que quando gordo só tinha transito como amigo.
Miro magro sobrevivia tropeçando pela vida, tentando afogar a saudade da época de folia. O carnaval de desbunde, indecência e alegria. Perdido na multidão, deixando de lado a pobreza, o mau humor e as constantes noites de solidão. Nos seus trinta e quatro anos de vida, Miro gordo só sabia ser gordo, quando se descobriu magro dentro do espelho se esqueceu da vida. Ficou magro para viver e acabou vivendo menos por ser magro. Lutava para acreditar que solução não estava na bíblia, nos irmãos que lhe davam ternos rotos e tapinhas nas costas de parabéns se dizendo orgulhosos.
Parabéns de que?
Orgulhosos como?
Como se pode querer bem a àquele que começa a deixar de se gostar?
A vida só começa quando começam os sonhos, e Miro gordo perdeu seus sonhos junto com seu peso. Tentou substituir com novos, mas descobriu perplexo que não lhe restava nenhum. Só possuía sonhos de gordo. Sonhos de farturas e abusos. Bebendo toda cerveja e comendo toda fritura que lhe apetecia. Admirador das carícias emprestadas e desprovidas de segundas intenções que as mulatas lhe dispensavam no carnaval. O suor brilhante, os flashes das fotos, os pequeninos fantasiados que os pais traziam sorridentes para tirar retratos na sua companhia. O gordo aparecia, e amava sem sentir sua gordura, o carnaval sorria para sua gordura, as pessoas o amavam. Perdendo o peso e o titulo monárquico, Miro magro, abatido e sisudo não existia para ninguém. Suplicava um cantinho no paraíso, agora bem mais leve, e jurava tentar esquecer o inferno, o pecado do carnaval.
Mas que pecado afinal?
Um mundo de gente esquecendo os problemas e vivendo de amor. Uma chuva de confetes e um turbilhão de sons diferentes de uma só vez castigando os tímpanos e anestesiando as tristezas. Miro gordo fazia parte disso. Miro magro foi incapaz de perceber, preocupado com cirurgias e dietas forçadas.
A lata de cerveja gelada descendo suave pela garganta o trazia de volta ao carnaval. Ao seu inferno de estimação, nunca esquecido apesar de tantos sermões. Não estava pronto para se despedir. Miro magro sem jeito voltava para seu universo, descobrindo embasbacado que gordo ou magro ali era seu lugar. Abriu mão do passaporte para o paraíso prometido, voltando para gandaia. Miro magro, gordo, rei momo ou plebeu no meio do povão, era o Miro que nunca feliz novamente. O carnaval do gordo, magro, preto, branco e mulato. Carnaval do Brasil e do mundo. O brilho que não se apaga, condenado pelo longo feriado, pelos desgastes, amado pela liberdade, alegria e vida. No meio dos índios, pierrôs e colombinas. O povo abria os braços e recebia de volta o rei momo magro, o Miro do carnaval.

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