terça-feira, 16 de março de 2010

Sofrimento fiel


Pica-pau era um lorde das ruas do bairro. Proprietário de um burro sem rabo, trabalhando e fazendo dele seu lar móvel, vagando pela cidade, seguido pela sua cachorrada. Mais de dez vira-latas completavam sua corte, de todos os tamanhos, cores e humores, uma malta barulhenta enlouquecendo os arrogantes que mudavam de calçada enojados com tanta balburdia evitando topar com o sem teto. Pica-pau não se importava, não era mesmo dado a banho e coisas de higiene, seu único prazer era uma caninha no final das atividades. Era companhia divertida, sempre postado na calçada da padaria de Seu Jorge onde filava cerveja dos solitários com seus causos em que jurava ter sido rico, dono de puteiro, alimentando o boato de vir fugido de um lugar distante depois de matar um sujeito. Até aonde era verdade os relatos da figura pitoresca ninguém podia saber, mas o apelido ganhou por adorar imitar o personagem famoso do desenho animado com seu gritinho de he he he. Uma manha chuvosa de terça despertou estranho, recusou bebida, rejeitou o pingado que o padeiro oferecia no começo do dia. Estava cabisbaixo, sem força não saiu em busca de trabalho, o resto da semana seu estado foi se agravando até o perceberem desacordado. Na padaria fizeram inúmeras tentativas de conseguir uma ambulância para recolhê-lo, sem êxito improvisaram o pobre no carro do dono e levaram para assistência. Internado em estado grave faleceu em poucos dias, dando fim a uma história envolta de mistérios.
A cidade perdia um personagem curioso, oriundo da miséria porem carregado de brilho próprio. Partia na sua liberdade de levar a vida sem vintém, maltrapilho folclórico que literalmente não tinha onde cair morto. O dono da padaria patrocinou do próprio bolso o ultimo desejo do moribundo de não ser enterrado como indigente.
Pica-pau teve uma despedida sentida, sofrida por muitos, um velório populoso, mas nada se comparou a dor da família canina. Um sofrimento fiel, uivando chorosa a passagem do pai, protesto inútil deixando evidente a lacuna da ausência. Era a demonstração da natureza ensinando que a falta nem sempre vem do bolso do soberbo que se julga importante para sociedade, mas pode vir do mendigo que não tem medo de desperdiçar amor, única coisa de valor que pode ter.

Um comentário: